terça-feira, 3 de março de 2009

Um enxame. Uma ciclicidade


" O Haver [1]


(Vinícius de Morais)

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura

Essa intimidade perfeita com o silêncio

Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo:

— Perdoai! — eles não têm culpa de ter nascido...


Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo

Essa mão que tateia antes de ter, esse medo

De ferir tocando, essa forte mão de homem

Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.


Resta essa imobilidade, essa economia de gestos

Essa inércia cada vez maior diante do Infinito

Essa gagueira infantil de quem quer balbuciar o inexprimível

Essa irredutível recusa à poesia não vivida.


Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento

Da matéria em repouso, essa angústia de simultaneidade

Do tempo, essa lenta decomposição poética

Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.


Resta esse coração queimando como um círio

Numa catedral em ruínas, essa tristeza

Diante do cotidiano, ou essa súbita alegria

Ao ouvir na madrugada passos que se perdem sem memória...


Resta essa vontade de chorar diante da beleza

Essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido

Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa

Piedade de sua inútil poesia e sua força inútil.


Resta esse sentimento da infância subitamente desentranhado

De pequenos absurdos, essa tola capacidade

De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil

E essa coragem de comprometer-se sem necessidade.


Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza

De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser

E ao mesmo tempo esse desejo de servir, essa

Contemporaneidade com o amanhã dos que não têm ontem nem hoje.


Resta essa faculdade incoercível de sonhar

E transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade

De aceitá-la tal como é, e essa visão

Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior

De mundos inexistentes, e esse heroísmo

Estático, e essa pequenina luz indecifrável

A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.


Resta essa obstinação em não fugir do labirinto

Na busca desesperada de alguma porta quem sabe inexistente

E essa coragem indizível diante do Grande Medo

E ao mesmo tempo esse terrível medo de renascer dentro da treva.


Resta esse desejo de sentir-se igual a todos

De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem história

Resta essa pobreza intrínseca, esse orgulho, essa vaidade

De não querer ser príncipe senão do próprio reino.


Resta essa fidelidade à mulher e ao seu tormento

Esse abandono sem remissão à sua voragem insaciável

Resta esse eterno morrer na cruz de seus braços

E esse eterno ressuscitar para ser recrucificado.


Resta esse diálogo cotidiano com a morte, esse fascínio

Pelo momento a vir, quando, emocionada

Ela virá me abrir a porta como uma velha amante

Sem saber que é a minha mais nova namorada. "



( [1] Retirado do sítio http://www.releituras.com/viniciusm_haver.asp.
O editor Daniel Gil (um dos críticos mais expressivos de Vinícius) encontrou essa versão corrigida na edição O Melhor de Pasquim 1969-70 (pág. 42), e crê que esta seja a versão final do poema, após oito anos de modificações. )



É impressionante e assustador quando vivenciamos coisas repetidamente, como se estivessem a se repetir. E é mais ou menos assim que se dá a experiencia de algo escrito para nós mas não por nós mesmos.



Quando lí este poema do Vinícius de Morais, tive a legítima impressao de que fora eu mesmo quem me reservei uma carta-memória para que, num futuro distante e imprevisível, eu voltasse a lê-la. Como se eu quisesse me livrar do risco de esquecer de mim mesmo num documento auto-biográfico tão sábio. E é certo que todos nós merecemos esse sentimento de encontro a si mesmo, momento de transparência a si mesmo. A própria raridade da circunstância a confere mais espanto. Imagine como se sentiu o primeiro índio a se ver no espelho, ou o quanto de estupefarto ficou Narciso ao se mirar nas águas. Preso dentro de si mesmo e sem saber dos contornos de sua personalidade, de repente você está face a face com um desconhecido tão próximo e eminentemente seu.


Se o Vinícius não tivesse morrido em 80, diria que ele teria escrito pra mim. (rs) Mas certamente é dele mesmo que fala. Aí me assusta mais como é que duas pessoas podem ser tão pares nas entrelinhas de um poema? Acho que ele deveria ficar feliz por isso. Escrever algo tão belo, mas que mesmo assim pode ficar no esquecimento e, assim mesmo, vencendo as intempéries da história e dos egos, ainda ser capaz de encontrar um coração de forma tão vívida e nova. Feliz por ser e "sentir-se igual a todos", e simples como os outros. Pelo menos aí somos análogos, recolhidos nas tramas de seu poema. Eu, por mim, estou e ficaria contente. Além do presente da Beleza, me prestou uma "ajuda" de autoconhecimento, de encontro e de perda no belo e no subjetivo.


Vou garregar esse poema como meu-hino.

Como meu mantra, minha carta de visitas... ou de espanto.

Vou decora-lo como a quem aprende a rezar

e quem achar que, lendo-o, há de me encontrar

digo que o mais importante poema ainda há de ser escrito.

Um comentário:

  1. essa tristeza

    Diante do cotidiano, ou essa súbita alegria

    Ao ouvir na madrugada passos que se perdem sem memória...


    Resta essa vontade de chorar diante da beleza!

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